Caminho tortuoso até o documento eletrônico

Um pouco de história

Creio que nada foi tão importante para a cultura, o avanço do conhecimento humano e a preservação da história da humanidade quanto a evolução da escrita. Das pedras da pré-história, ao papiro (Egito, terceiro milênio A.C.) e ao pergaminho, e daí chegando ao papel (China, século II).

Veio então a mecanização com a imprensa de Gutenberg (século XV) como veículo de massa, seguida da máquina de escrever (século XVIII) que tornou essa mecanização pessoal. No final dos anos 1940 a fotocópia (xerografia) popularizou a cópia fiel de documentos e o fax (facsimile) introduziu até a transferência remota de documentos através da rede telefônica.

E finalmente chegou a era dos computadores no século XX. No início, acreditava-se que o consumo de papel diminuiria bastante, pois ele teria ficado obsoleto. No entanto, na prática tem ocorrido o inverso: a cada ano, o consumo de papel tem sido maior. A máquina de escrever foi substituída pela dupla computador e impressora, e isso só aumentou a escala de uso do papel.

Junto com a era digital evoluiu toda a multimídia, inclusive áudio e vídeo. As fotos e imagens já se popularizaram fortemente no meio digital, e o filme de fotografia já está obsoleto. Mas o livro eletrônico e o papel digital ainda não são realidade para as massas.

A cultura do papel

Em tempos de sustentabilidade ecológica e social e da tecnologia como instrumento de aceleração do progresso, há forte motivação para redução do papel: A preservação das árvores (fonte da matéria prima celulose); a desburocratização e o imenso acúmulo de papel em instituições privadas e governamentais; a velocidade e a praticidade do meio digital como forma de armazenamento, recuperação e transmissão de informação.

No Brasil, já temos imposto de renda eletrônico via internet, o voto eletrônico, a nota fiscal eletrônica, o processo judicial eletrônico, o e-CPF e o e-CNPJ. Convenhamos, as iniciativas rumo à sociedade digital são muitas.

Mas cultura e os hábitos do papel, ampla e profundamente entranhados na humanidade há milhares de anos, não mudam fácil.

O correio eletrônico é a carta digital, mas ainda hoje muita gente imprime uma mensagem de e-mail ou outro texto digital apenas para ler, pois “é mais cômodo ler no papel do que na tela do computador”.

A tecnologia da assinatura digital, que permite dar validade oficial, legal e/ou jurídica a documentos eletrônicos já existe e está bem estabelecida desde o final da década de 70, mas ainda é tão desconhecida quanto cabeça de bacalhau para a grande maioria das pessoas. E mesmo a maioria dos que conhecem e usam ainda desconfiam.

Caminho tortuoso

Nas ferramentas digitais, há o scanner para digitalização. Em tese, o scanner é uma forma fácil de tornar digital qualquer legado existente em papel. Na prática, estabelecer um processo de trabalho e uma cultura adequados à lida com documentos digitais tem muito mais peso. O scanner pode se tornar um elemento a mais no emaranhado de ferramentas e recursos que, não raro, acabam por confundir as pessoas e/ou complicar o cenário de lidar com informação e documentos digitais.

Hoje, a maior parte dos documentos é confeccionado digitalmente em um editor de texto, no computador. Mas pode seguir caminhos estranhamente tortuosos a partir daí, como ser impresso, assinado no papel, transmitido por fax (e impresso de novo no destino), fotocopiado e, até, eventualmente, digitalizado para voltar ao computador, quem sabe daí ser transmitido por e-mail como uma imagem ou um arquivo PDF. Chega-se até ao luxo de recorrer ao OCR, a tecnologia de reconhecimento ótico de caracteres em documentos digitalizados como imagem, para converter em… texto como nasceu na origem, naquele editor de texto onde foi confeccionado, lembra?

Pesquisa recente da AIIM, associação internacional independente que promove o gerenciamento de documentos e de conteúdo, perto de 51% dos documentos em papel escaneados pelas organizações nascem digitais, tendo sido impressos diretamente de uma aplicação em computador. O estudo também apontou que 25% dos documentos digitalizados foram fotocopiados antes de ser enviados ao scanner, e que só 31% do total foram destruídos após digitalizados.

Além de comprovar que a situação tortuosa que descrevi, apesar de parecer ridícula, está bem perto do real, a pesquisa retrata objetivamente a relutância e dificuldade das organizações em lidar com o documento digital e em perder de vista (fisicamente falando) os seus documentos importantes.

Há ainda questões controversas sobre o documento digitalizado — a partir de original em papel — não ser legalmente presumido autêntico, tal que o papel possa ser eliminado. A Lei Federal nº 11.419/2006, que instituiu o processo judicial eletrônico no Brasil, teve que definir condições específicas em que os documentos produzidos eletronicamente serão considerados originais para todos os efeitos legais (Art. 11 e seus parágrafos), prevendo inclusive a destruição de citação, intimação ou notificação praticada em papel e digitalizada (Art. 9º § 2º).

Preservação e futuro

E como preservar o documento digital? O papel (e seus antecessores) tem permitido preservar o conhecimento e a história da humanidade por milhares de anos. Mas em um mundo da tecnologia em constante ebulição, ainda é um desafio para especialistas, governos e organizações garantir padrões, condições e recursos para a preservação e efetividade do conteúdo digital por centenas e milhares de anos.

Nesse cenário, meu sonho de consumo, como adepto fervoroso da tecnologia, é ver toda essa tecnologia, cultura e hábitos do conteúdo digital estabilizada, disseminada e aceita na cabeça e no dia-a-dia de todos, de forma simples, efetiva, duradoura e natural.